“Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.”
Ailton Krenak em “Ideias para adiar o fim do mundo
Não é preciso nenhum tipo de sensibilidade especial ou mística para se perceber a influência, na Terra, de dois outros corpos celestes: o Sol e a Lua.
Desde que a humanidade tomou consciência da própria nudez e, percebendo-se ser humano, passou a olhar com distanciamento para o céu, nos deslumbramos com o mistério da alternância entre os dias ensolarados e as noites escuras e com o desvelar cíclico das fases da Lua.
A noção temporal do ano, com suas quatro grandes épocas, é posterior: remonta ao período em que a humanidade se assentou e passou a cultivar a terra, vivenciando-a nas quatro estações e despertando a consciência para o grande ciclo anual.
O dia solar, o mês lunar e o ano com suas quatro estações são, portanto, as formas de medir o tempo naturalmente utilizadas em qualquer calendário.
O calendário solar, base do calendário gregoriano que utilizamos comumente no ocidente, tem base no ano sideral, a duração da revolução da Terra em torno do Sol, que é igual a aproximadamente 365 dias.
Já o calendário lunar, cujo protótipo é o calendário islâmico, mais amplamente difundido no oriente, acompanha o movimento da Lua em torno da Terra, isto é, o mês lunar sinódico, que é o intervalo de tempo entre duas conjunções da Lua e do Sol. Sua duração é de aproximadamente 29 dias e meio.
Matematicamente, porém, os ciclos não se encaixam, ficam “sobrando” 12 noites.
Você pode pensar nesse desencaixe como um mero acaso ou um defeito da natureza.
Ou então imaginar que a natureza é perfeita, que foi ela quem inventou a matemática, afinal de contas, e que, portanto, exista uma razão oculta para isso.
Eu fico com a segunda opção, que, para mim, faz muito mais sentido.
Ela remonta a ritos da antiga tradição cristã esotérica, resgatada no início do século XX por Rudolf Steiner, o fundador da Antroposofia, a Vigília das Doze Noites Santas.
Segundo essa tradição, nesse período de desencaixe, o céu fica mais aberto, mais perto do ser humano. Por um lado, isso explica toda a ansiedade e inquietação dessa época do ano: é impossível tentar “tocar a vida cotidiana” sem ser invadido por pensamentos mais existenciais e sentimentos mais viscerais.
Por outro lado, essa proximidade permite que bênçãos advindas das hierarquias celestes se derramem sobre aqueles que oram e vigiam nessas noites santas.
Não sem razão, aqueles cristãos ancestrais escolheram celebrar o Natal (nascimento de Jesus, o ser humano por excelência) e a Epifania (nascimento do Deus-filho na Terra, com o batismo no rio Jordão) nas duas pontas desse período tão especial do ciclo anual.
Podemos pensar também no caminho evolutivo desde os pastores, que seguiram a estrela com o coração e chegaram à manjedoura do nascimento do Deus-menino em 25/12, até os reis magos, detentores da sabedoria esotérica da época, que seguiram a estrela com todo seu conhecimento astrológico e astronômico, caminhando pelo zodíaco por doze noites santas, até conhecerem a criança divina e lhe ofertarem seus presentes reais, em 06/01, Dia de Reis.
A Antroposofia, apropriando-se de todo esse conhecimento milenar com os pés no presente e a cabeça nas metas que o ser humano deve atingir no futuro, propõe uma jornada que muito me instiga e me encanta: uma jornada para dentro, de introspecção e autoconhecimento, com a possibilidade de revelação sobre o novo ciclo, por meio da correspondência das imagens dos nossos sonhos em cada uma das noites santas com o respectivo mês do ano que se inicia.
Mais ou menos assim: as imagens dos sonhos da primeira Noite Santa, de 25 de dezembro, me revelam algo sobre o meu mês de janeiro e assim por diante até as imagens dos sonhos da 12ª noite, 5 de janeiro, que corresponderão ao mês de dezembro do novo ciclo.
O sonho da 13ª Noite, dia 6/12, é o presente dos Reis Magos para quem se dedicou ao longo das doze noites anteriores com devoção e persistência, suas imagens revelam a síntese do ano.
Independentemente de quaisquer caminhos iniciáticos pré-trilhados, de religiões, crenças ou rótulos, a verdade é que somos, cada um de nós, microcosmo do macrocosmo: dentro de cada ser humano há um universo inteiro em miniatura.
Então, gosto de pensar que, o que quer que você chame de Divino, o que você imagina que exista lá, nesse lugar superior para além das estrelas, tudo isso habita de alguma forma dentro de você também.
De forma que guardamos em nosso eu mais particular uma língua em comum com esse “lugar” superior. Diferente da língua de todos os outros seres humanos, por sermos individualidades autônomas, porém profundamente em comum, na essência, com o que há de essencial no mundo espiritual. O sonho é um portal que faz ponte entre esses dois mundos.
O Neurocientista Sidarta Ribeiro, em seu livro “Oráculo da Noite” traz um panorama histórico e científico da importância dos sonhos para o desenvolvimento da humanidade:
“Quando os povos védicos acreditaram que Vishnu sonha o Universo em realidade, legaram uma metáfora poderosa do que fazemos quando sonhamos. Sonhar sem intencionalidade é necessidade e circunstância humana, mas sonhar com intencionalidade é uma opção radical de vida, é buscar no interior da mente algum estado que esclareça, inspire, emocione, transforme ou cure.”
“O sonho funciona, portanto, como um oráculo probabilístico, não muito diferente do que se acreditava na Antiguidade em termos de suas consequências para o sonhador, mas bastante diferente quanto à sua natureza: as imagens oníricas não revelam, portanto, o destino do sonhador amanhã, mas apenas seu rumo aparente hoje”.
“Se o mundo de dentro é tão real quanto o de fora, então é preciso enxergar os sonhos premonitórios como fatos naturais – o que não significa dizer que suas interpretações também sejam naturais. Negar a eficácia do oráculo probabilístico é tão arriscado quanto acreditar piamente em suas premonições”
“No mundo contemporâneo não há lugar nenhum para o sonho. Ninguém pergunta sobre os sonhos. Mas, se você não prestar atenção aos sonhos, no fundo, é todo um espaço mental que deixa de existir. É como se a pessoa abrisse mão de uma dimensão da sua mente”
E você? Qual a sua linguagem em comum com o mundo espiritual? Qual o meio físico e anímico que os deuses usam para mandar recados para você? Quais imagens, sonhos, sons, melodia, cores e formas, tocam sua alma? Quais histórias, causos, cheiros, te dão pistas de reconhecimento de onde você veio e para onde deve mirar?
Essa linguagem, esse dicionário, é particularmente seu e só você pode decodificá-lo.
Sabe aquele conto sufi do sábio Nasrudin que, tendo perdido as chaves do carro em um estacionamento escuro, as procura próximo a um poste de iluminação e, perguntado se foi ali que as perdeu, responde que não, mas que é ali que está claro e mais fácil para procurar?
Pois não sejamos como Nasrudin. Tenhamos coragem de procurar no escuro do nosso íntimo. Lá mesmo é que está escondida a chave!
Meu convite, finalmente, é que você caminhe nesta fenda temporal que são as Treze Noites Santas olhando muito mais para dentro e para cima, e muito menos para fora ou para trás ou para frente.
Ao final, te convido a observar os efeitos dessa vigília em você e no seu ano, colhendo mês a mês os frutos como resultado dessa jornada.
Meu convite é que aproveitemos esse período de fim e recomeço de ano, que nada mais é do que o ciclo que já mora na natureza do ser humano desde tempos imemoriais, para renovarmos as energias, nos localizarmos e nos posicionarmos para encarar a vida, aquela vida que vale a pena ser vivida, sem muita regra além do “orai e vigiai”.
Aceita o convite?
Escritora, Pedagoga Curativa e Aconselhadora Biográfica, membro da ABAB desde 2023.
Mãe de três crianças, bordadeira amadora, cursou Direito e atuou por treze anos na área jurídica até encontrar-se com outras leis, as leis biográficas, e compreender que contar nossa própria história à luz dessa trilha arquetípica humana nos instrumentaliza e liberta para escrever com protagonismo nosso destino.
Indicações Bibliográficas:
“A Catedral do Amor” Luciana Pinheiro e Marília Mäder
“As Treze Noites Santas – O nascimento do espírito do Sol como espírito da Terra”, Rudolf Steiner (GA 127)
“As Doze Noites Santas”, Edna Andrade
“O Zodíaco e as Hierarquias Espirituais – Um Caminho através das Noites Santas” Sergei O. Prokofieff
“Oráculo da Noite”, Sidarta Ribeiro
“O desejo dos outros – Uma etnografia dos sonhos Yanomami” Hanna Limulja
“Ideias para adiar o fim do mundo” Ailton Krenak
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-analytics | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics". |
cookielawinfo-checkbox-functional | 11 months | The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional". |
cookielawinfo-checkbox-necessary | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary". |
cookielawinfo-checkbox-others | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other. |
cookielawinfo-checkbox-performance | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance". |
viewed_cookie_policy | 11 months | The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data. |